terça-feira, 25 de novembro de 2014

Jus Anima

Certa vez, há algum tempo do qual é difícil afirmar com exatidão quanto pois todos os registros perderam-se, na distante e ao mesmo tempo próxima Terra do Ser, travou-se uma batalha entre os Reinos do Pensar e o do Sentir.

Ambos, firmes na convicção de que sob a égide de suas filosofias seus exércitos eram os mais fortes, preparados e, porque não dizer, os verdadeiros merecedores da vitória que culminaria na conquista de todas as vastas amplidões do Ser, proclamando o regente vencedor como senhor absoluto de todas as coisas que existissem desde a superfície até o limite do firmamento daquela terra tão fértil e cobiçada, não esquecendo o domínio sobre o que jazia escondido nas profundezas, igualmente valioso e profícuo...

Primorosamente ornados, cada exército levava à frente seus estandartes.

O do Pensar, colorido numa matiz matematicamente descoberta após exaustivas pesquisas,
servindo esta de pano de fundo, preenchendo quase a totalidade do rico tecido, que por sua vez fora confeccionado usando o mais puro linho, entrelaçado milimetricamente graças a um tear que dizia-se ser um dos mais modernos concebidos até então. Bem no meio da flâmula, um brasão bordado com fios de ouro garimpado nos leitos dos rios mais puros do reino. Precisamente no centro do tal brasão figuravam uma pena finíssima e um cristal de nanquim, tendo logo abaixo a inscrição "Erga omnes, ratio legis".

À frente das fileiras do Sentir, igualmente destacava-se seu estandarte, este feito de algodão cru, aproveitado de sacos de trigo, costurados com algum esmero, mas não tanto assim...
De fato era um tanto confuso, quase uma colcha de retalhos onde figuravam pequenos quadrados - forma de dizer, pois alguns eram retangulares, outros circulares e mesmo uns tantos sem forma nominável - cada qual ostentando diversas figuras: borboletas, um sol risonho, um mar com nuvens tempestuosas e raios, o rosto de uma criança sorrindo, mas em meio a toda essa "poluição visual", conseguia-se divisar com certo destaque, ao centro, um coração estilizado.

Ao contrário do costume em situações de combate, ambos estandartes eram conduzidos pelos regentes em pessoa. Muito se discutiu, em ambos os reinos, sobre o perigo do comandante-em-chefe,
o regente-mor, ser a pessoa a seguir assim justo na vanguarda, desguarnecido, exposto de maneira tão suscetível a ser o primeiro em que fossem infligidos os ferimentos e por consequência, serem as primeiras vítimas a tombarem no campo de batalha. O que seria do moral das tropas, caso isso acontecesse? Como seguir adiante, tendo que literalmente passar por cima justamente deles?
Qual seria a motivação de todos em perseguir uma conquista se quem deveria servir de inspiração estaria ali, jazido?

Pois bem que a despeito de todos os conselhos recomendando prudência e inúmeros argumentos e apelos, ambos regentes fizeram-se de moucos e, coincidentemente usaram como palavras finais e definitivas as mesmas em suas decisões: "Esta guerra, antes de tudo, é minha."

Postos frente a frente, numa manhã de sol cálido mas que se recusava a ter sua luz difusa por nuvem de qualquer espécie que fosse, ambos exércitos colocaram-se em posição de combate.
Das fileiras de soldados, viam-se dentes renhidos, ouviam-se gritos de guerra proferidos ao extremo superior possível da audibilidade humana; verdadeiros canhões humanos cuspindo palavras como se foram balas; gerados em corações furiosos e fiéis às suas respectivas causas, crescidos nas gargantas findando a morrer em bocas que espumavam, reverberando ideais atávicos.

Em meio a tudo isso, ambos regentes contrastavam, impassíveis e concentrados, silenciosos...

Meio-dia. Soaram as trombetas. Corpos enrijecidos, mãos crispadas, armas em punho: é chegada a hora!

Porém, para surpresa de todos, o Rei do Sentir vira-se e diz a seus comandados: "Fiquem. Irei só." Bocas se abrem em estupefação ante a tal e nova loucura. Bocas fecham-se, obedientes.

E assim, começa a marcha solitária do regente, conduzindo seu estandarte.

Ao ver tal movimentação no campo oposto, o regente do Pensar volta-se atônito ao seu séquito de conselheiros - que insistiram em não arredar pé, mesmo que a alguns passos de seu Rei, formando uma fileira distinta de salvaguarda, vai saber, postada imediatamente atrás do intrépido (insano! inconsequente!) Rei. Todos e cada um deles, fazendo jus à sua condição, põem-se a tagarelar entre si, elocubrando, discorrendo sobre todas as possibilidades, enfim, sobre o que deveria e poderia ser feito ante a tal situação.

O Rei, na medida do possível - o barulho era tamanho... - ouve a todos e solenemente declara: "Todas vossas palavras entram em mim e encontram eco no mais profundo vale da minha lógica, porém não seria de bom-tom que eu não assumisse a mesma postura altiva e bravia e seguisse igualmente
só, ao encontro de meu par e oponente. Fiquem. Irei. Só."

Qual outra opção a quem não pode senão obedecer? Quedam-se cabisbaixos e em silêncio doloroso os conselheiros-mor, seguidos dos conselheiros destes logo atrás e consecutivamente assim deu-se por todas as fileiras, até o último homem na retaguarda. Tão logo constatou que sua determinação fora cumprida por todos, pôs-se o Rei a andar firmemente em frente.

Ambos regentes marcham compassadamente até postarem-se frente a frente. Em silêncio.
Agora, não mais que meio palmo os separa a ponto de que era possível cada um enxergar sua própria imagem refletida nos olhos do outro.

E aí, acontece.

Ante àquela visão de si mesmos, ambos abrem um sorriso. Primeiro tímido, meio de lado. Depois, veem-se os dentes, seguidos das gengivas, depois o oco profundo das bocas num gargalhar.

Eles eram idênticos?

Nunca haviam se encontrado antes. Todos os relatos descreviam um ao outro como ogros de tão feios e tão diferentes. Verdadeiros alienígenas. Absurdas aberrações.
Mas ali, de tão perto, foi possível ver que não eram tão diferentes. Aqui e ali um adorno a mais ou um a menos. A grande surpresa deu-se justamente quando se viram um pelo olhar espelhado do outro, que em ato contínuo, seguiu-se um perscrutar de semelhanças e comparações, deitando o olho e percorrendo desde a fronte até o bico da bota...

Não, não eram de fato idênticos.

Eram complementares.

...

No dia seguinte, a quatro mãos redigiram o que mais que um armistício era uma profissão de fé, um definitivo e último decreto:

"Artigo Primeiro: Deste momento em diante, todas as palavras escritas ou ditas terão exatamente o mesmo valor e peso das coisas sentidas e veladas.

 Artigo Segundo: Não será admitida, sob nenhuma circunstância, pontual ou com intenção de definitiva, que qualquer coisa que já habite ou venha a nascer na Terra do Ser não seja expressa de forma complementar e absolutamente necessária através de sentimentos e palavras.

 Parágrafo único: Mesmo que inauditas, as palavras deverão indiscutivelmente ser consideradas a mais pura expressão do que se sente e verdade pessoal última, mesmo e principalmente aquelas que venham a permanecer para sempre dentro da mente, do coração e da alma de quem as sente, não estando ninguém obrigado a ter que falar, explicar, justificar ou discursar sobre tais sentimentos.

 Artigo Terceiro: Às palavras proferidas será dada a respeitosa condição de expressão pessoal igualmente valorosa como previsto no Artigo Segundo, Parágrafo único, cabendo ao que as ouve mesma reverência e compreensão, na exata medida, sendo elas interpretadas como forma diversa de expressar, respeitando o mais importante que são seu conteúdo.

 Artigo Quarto: Para o bem de todos e coerentemente, o presente diploma legal será escrito no mais fino papiro que deverá ser jogado (não antes sua divulgação e confirmação de entendimento, anuência e adesão de todos os que habitam a Terra do Ser) no mar para que o mesmo dissolva-se até o ponto que deste não reste o mínimo traço.

 Revogam-se todas disposições em contrário a partir da publicação deste ato, pois o mesmo tem como objetivo precípuo o encontro da Felicidade em seu sentido mais amplo bem como do Amor, tendo a compreensão de que todas as formas de alcança-los são válidas, respeitando a condição individual de todos que a Terra do Ser habitam."

Assim foi feito e tudo o que se sabe dessa história foi passado de geração a geração por palavras.

E sentimentos.


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