domingo, 24 de maio de 2009

Presente

É meia-noite. O tempo, uma convenção. Mas ele existe. E passa, inexoravelmente. Por ele, como que numa passarela, desfilam dores, amores, alegrias supremas, amigos... Nem bem um minuto atrás era uma menina. Risonha, de cabelo bem curtinho de trela (dela) e doidice (da mãe). Hoje, ladeira abaixo desembestada pra ser mulher. Maravilhosa, ao que tudo indica. E vai ser mesmo.

Em momentos assim esperam-se lampejos de rara sabedoria, pensamentos profundos, algo que possa mostrar orgulhoso e dizer: veja o que ele escreveu pra mim!

Mas acho que não consigo nada disso. Meu ouro é pouquinho, nem 24 quilates o bichinho é, sequer. Mas tudo que tenho é teu. de coração. Então vai algo que consigo, tá bom?

Um dia um homem andando por uma floresta, viu, preso numa folha, um casulo. Lindo, perfeito. E pôs-se a imaginar como a Natureza era maravilhosa e que devia haver, de fato, algum Deus mesmo por aí, um "senhor das esferas", como disse Vinícius, criador de tudo o que existe. 

O casulo, inclusive. Mais do que um simples (não, não é nada simples!) inseto recolhendo-se do mundo para o seu mundo, como quem diz "give me a break, man!", há uma mítica tanto no recolhimento quanto na transformação iminente e inerente, pensou o homem. Cansado de sua existência, não por ser ela rastejante, mas simplesmente porque já era tempo de mudar mesmo (não é sempre assim?), ele prepara-se num perfeito simulacro para encarar uma nova trajetória, abandonando pra sempre o horizontalismo de lagarta. Um tempo certo, o de viver nas folhas, outro, o de recolher-se e mais um, o de voar...

Com todas essas idéias pululando na cabeça, o homem observa o casulo e segue. Dia seguinte, ao passar novamente pela planta-abrigo, decide tocar no casulo. Ele reage! Mas sempre reagimos, mesmo quando tudo e todo juram que estamos mortos, ou em estado letárgico. Ele decide então, levá-lo para casa, estudá-lo mais de perto, assistir a todas as etapas da transformação. 

Ato contínuo, com todo zelo, tira o casulo da folha e leva-o para casa. No entanto, como o tempo certo, as coisas também dependem do lugar certo para ocorrerem a contento. E o casulo parece, ao longo dos dias, não mais evoluir. Ele toca, e nada... Até, que numa noite tresloucada, o homem pensa: preciso desta transformação! Tenho que tê-la dentro de mim! Essa é a grande solução, a saída de mestre. E come o casulo...

Filha, teu tempo de muda chegou. Mas na verdade, ele estava já aí e sempre estará, no momento que você quiser e precisar. Virar a página dos 18 anos é maravilhoso; enxergar tudo o que deu-se de hoje para trás é igualmente lindo como há de ser o que virá. Seja feliz sempre. Seja lagarta, borboleta, o que quiser, mas lembre-se sempre que ser casulo também é importante.  

Serei tua folha. Eternamente. Te amo.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Amando palavras

Poesia não se lê, se vive. Sempre achei isso. 

Li muita, na adolescência. 

Bandeira, Quintana, Vinícius, Neruda... Fizeram-me ver melhor a mim mesmo. Até consegui ver toda a poesia de Kafka, com imensas doses de melancolia implícita e com uma identificação pessoal tremenda - até canceriano era ele também afinal... Mas essa fase passou. A de Kafka, ao menos.

Hoje leio poesia como diletante. Amante declarado das palavras.

Descobri o último poeta por acaso. Fuçando, em busca de algo perdido no passado. Aquele je ne sais quoi, aquela coisa saudosa que nos assoma vez por outra, inda mais mais velho tornamo-nos. 

Leminski.

Delicioso como sorvete de pitanga e chocolate na Bacana de Olinda em dia de muito, muito sol.

Isso de querer
Ser exatamente aquilo
Que a gente é
Ainda vai
Nos levar além.

Nada mais a dizer - nem precisaria, né mesmo?

...

Mas tenho.

A poesia nos rodeia. Mas tanto, tanto, que roda, roda, rodopia e acaba caindo dentro de nós mesmos, em um torvelinho. Nela, tendo "olhos de ver" (como aprendi ontem) achamos segredos insondáveis que - pasmem! - jurávamos que eram nossos apenas, mas que habitaram na cabeça e na alma de outra pessoa. 

Isso nos faz lembrar que fazemos parte de um Todo, que alguns chamam de Deus, outros de "inconsciente coletivo"... 

O que me remete a uma outra observação, a de que não temos absolutamente nada de inédito em nós mesmos, nem ao menos nossos próprios nomes próprios - exceto nos casos onde pais com uma dose extrema de mau gosto e, sinceramente, aparente ou mal compreendido pouco amor pelas próprias crias, as batizam com nomes inventados feito "Turi"... Tudo porque alguém, em algum momento no passado já teve exatamente o mesmo nome que carregamos na carteira e na estampa - já notaram que tem gente que parece não poderia ter outro nome senão aquele mesmo? Gente com cara do nome que tem... Mas isso é mote pra outro post.

Voltando ao poético que vem de fora, sendo de dentro de outro que é e acaba virando nossa própria verdade interna (Confuso? Talvez, mas ao menos pra mim faz todo o sentido...), essa poesia tem muito a ver com a identificação que sentimos quando amamos muito alguém. 

Do nada, aquelas coisas que nos eram personalíssimas, como a sensação que temos ao ver uma obra de arte, de repente ao olharmos para o nosso lado, no objeto de nosso amor - do qual somos também cria e criador - percebemos vibrar na mesma sintonia, reverberar a mesma delicada sensação de prazer e deleite ao permitir-se entrar n'alma o anima do artista. 

Talvez aí more uma pista sobre o amor, do por quê ele nos mexe tanto. Identificação. A poesia brinca com a identificação. Como o amor.

A poesia está em toda parte, mas com absoluta certeza naquelas coisas que nos comovem profundamente, como um vendedor de doces anunciando pela rua, meio cantando meio falando os sabores à venda - certa vez, acompanhei por minutos a fio um desses, literalmente viajando, esqueço nunca...

Ela mora no sorriso de uma filha, nos piscar de luzes dos postes lá longe, vistos da janela de uma apartamento, no mar (visto preferencialmente ao longe, porque o chuá-chuá incessante me causa certa aflição: nunca tem pausa! Tá bom, tá bom, nem combina muito com todo esse papo de poesia essa minha birra com o mar, mas se Caetano pode colocar em letras de músicas sua peitica com quem avança sinais vermelhos, vejo-me perfeitamente habilitado a ter minhas próprias cismas idiossincráticas), no cheiro do mormaço logo depois da chuva, e por aí vai. 

Cada um que pegue seus exemplos. Todos temos. Até acho que haja quem não enxergue "poesia" nessas pequenas coisas que nos tocam, mas creio que ocorra pelo simples fato de não associar "o nome à pessoa".

Essa poesia captada no cotidiano, a que habita fora das páginas, não necessariamente tem que ser coisa de gente introspectiva, não mesmo. Muito embora sendo um representante desta porção incompreendida da humanidade (canceriano, hiperbólico e exagerado, lembrem e perdoem), defenda que fica mais fácil em sê-lo quando dou-me ao luxo e prazer de parar na Rua do Sol, ali entre a ponte da Avenida Guararapes e a Rua Nova e ficar vendo o reluzir do sol n'água do Capibaribe, imaginando ser mar de papeizinhos alumínio dançando freneticamente.

Poesia. 

Pra corroborar tudo que penso e escrevi, socorre-me Tunai:

Certas canções que ouço
Cabem tão dentro de mim
Que perguntar carece
Como não fui eu que fiz?

Certa emoção me alcança
Corta-me a alma sem dor
Certas canções me chegam
Como se fosse o amor

Contos da água e do fogo
Cacos de vidas no chão
Cartas do sonho do povo
E o coração pro cantor
Vida e mais vida ou ferida
Chuva, outono, ou mar
Carvão e giz, abrigo
Gesto molhado no olhar

Calor que invade, arde, queima, encoraja
Amor que invade, arde, carece de cantar


Pois é... Certas cancões são nossas. Como filhos depois de gerados, poesias uma vez escritas, pertencem ao mundo, não mais - nunca mais - ao poeta. 

Como não fui eu que fiz essa mesmo?